João Concha
Nasceu em Évora, 1980.
Vive e trabalha em Lisboa, onde se licenciou em Arquitectura pela FAUTL, 2004.
Tem exercido arquitectura, como autor ou colaborador em diversos projectos, nomeadamente de reabilitação urbana e interiores.
Tem formação complementar em desenho/artes plásticas, tendo cursado ilustração no CITEN, 2005. Participou em workshops na ARCO e no CIEAM e frequentou o espaço-atelier ‘TeoArtis’ entre 1990 e 1998.
Tem trabalhado na área da ilustração, com colaboração em vários periódicos; espaço ‘DN Jovem’, revista ‘Big Ode’, jornal ‘Expresso’ e revista ‘Visão’ (com Re-Searcher), entre outras.
Tem participado em exposições colectivas de artes plásticas e exposto também individualmente, sobretudo pintura e colagem.
[exposições individuais;
“Alices, sem título”, Centro Cultural do Cartaxo, 2007
“Alices, que lugar?”, Centro Cultural de Redondo, 2007
“Alices, sem fim”, Museu do Trabalho Michel Giacometti, Setúbal, 2008]
Exposição
“Alices” + Auto-não-retratos
A exposição “bi-temática” apresenta trabalhos do projecto/série “alices”, bem como alguns trabalhos que decorrem de uma pesquisa plástica em redor de auto-(não)retratos.
Sob o tema “alices” expõem-se trabalhos de pintura e colagem, parte de longa série temática desenvolvida desde 2007 sobre o personagem ‘Alice’ de Lewis Carroll. A presença gráfica do personagem ilustrado no séc. XIX por Sir John Tenniel é comum a todos os trabalhos, interrogando condições e situações como a escala, os limites, a repetição; o suporte enquanto lugar habitado. Alice perde-se em superfícies vazias e contextos ambíguos, descobrindo o mundo enquanto o inventa, enquanto o recusa ou imagina.
Os “auto-não-retratos” são trabalhos/estudos em suportes e técnicas variáveis, que exploram a dificuldade, a ilegibilidade ou a inutilidade do retrato, e do auto-retrato. O autor apresenta-se como figura esvaziada de qualquer conteúdo ou imagem, numa galeria de figuras (não-retratos) não reconhecíveis, que evocam uma dispersão e uma não-individualidade do ser, uma repetição de anonimatos possíveis. [Estes trabalhos têm feito parte de uma pesquisa plástica para projecto/série “copycats”, ainda em curso].
Ceci est une pipe. Algumas ideias sobre e à volta da arte do João Concha
Vvoitek Ziemilski
autor do blog sobre arte contemporânea http://new-art.blogspot.com/
1.
Está noite. Estou deitado na cama e não consigo adormecer. Sinto-me cansado, mas o meu corpo parece bloqueado, tenso. Estico-me então com toda a força, até ouvir os ossos estalar. Sinto um enorme alívio: o meu corpo voltou a si mesmo. Libertei-me.
Libertei-me, quase. Simplesmente, alguns minutos depois, dou por mim que o meu corpo não se libertou mesmo. Continua com alguma tensão, não se compõe idealmente, e ainda por cima a cama está como demasiado dura. Será o colchão? Ou a almofada? Parece quase que cada coisa está mal, não se adequa a mim. Continuo estrangeiro na minha cama, no meu corpo.
É nesse espaço entre o eu e o resto que João Concha explora o seu terreno de jogo.
2.
É uma exploração antiga, uma tensão clássica. Mas aqui, a própria abordagem é peculiar.
Logo desde o primeiro contacto, descobrimos um espaço de tensão directa, transposta quase literalmente. Praticamente cada imagem contém uma discussão ostensiva entre os vários níveis de objectualidade (desenho, scan de objecto real, palavra, textura de uma folha…) e a personagem-herói, o sujeito, ou, para ser mais seguro, o alter ego. Claramente, há vezes em que o conflito potencial se transforma em simbiose, há outras em que a guerra parece rebentar. Mas o espaço entre o sujeito e uma trovoada de alteridade (de diferença, do não-eu) continua palpável. E nesse espaço, o eu encontra-se surpreendentemente limitado, frágil, apagavel. Aqui esse resto parece ultrapassar qualquer tentativa do sujeito de se meter em posição privilegiada.
3.
Qual é então a distância que nos separa das coisas?
Será uma distância invulgar, dado que estou deitado na cama, dado que até ouso dizer que foi o meu cotovelo que estalou.
Ora, se fico tão limitado, então como apreciar o tamanho desse resto? Não será terrificante a mais pequena coisa?
Mas que coisas são as pequenas coisas? Não estamos aqui a falar de coisas em escala menor, de macros – mas sim da pequenez das coisas. Das coisas na sua acessibilidade. E da estranheza que nos evocam, quando as olhamos de perto. A nossa aproximação, no entanto, nada tem de intimidade. Pelo contrário, constrói uma distância manifesta, mais forte ainda. A nossa aproximação, aqui, neste universo, é que faz de nos, justamente, espectadores.
4.
Numa das imagens, Alice está a esconder-se de uma régua. A régua é ao mesmo tempo objecto concreto, não-fictício, «demasiado sólido», mas também é explosiva, rebenta por todos os lados, a sua ordem nada tem de ordenado, a sua escala só pode ser grotesca, incompatível, e no entanto tão presente como qualquer experiência de vida que não se contém numa simples aceitação. O paradoxo parece trazer um encanto constante, um reposicionamento perpétuo do espectador enquanto ser-empático.
Pois aqui, tudo é espanto. Nessas distâncias, nessas histórias de heroínas oníricas, nesses jogos de fracturas, nessas fracturas de jogos, o prazer fica estendido entre a força esmagadora da matéria e a salvação, que, como dizia o poeta polaco Czeslaw Milosz, vem do pormenor. O espanto, a surpresa, constroem a nossa experiência estética, brincando com o nosso sentido de aqui e agora.
5.
Mas não esperemos excessos. Contida. Enquadrada. Relativizada. E no entanto, paradoxalmente, a nossa menina torna-se sempre mais verosímil, com cada objecto que parece autêntico demais, com cada traço da superfície prima, com cada selo que goza com a personagem, como o autor do Pirandello que, quer o admita quer não, goza com as suas Seis personagens à procura do autor.
Agora parece compreensível que técnica mista, neste caso, não signifique apenas uma mistura de vários tipos de aplicação. É antes uma combinação de várias abordagens ao que é uma imagem, que pode fazer pensar no Rauschenberg, com os seus campos brancos povoados esporadicamente de elementos aparentemente casuais. Mas aqui, ao contrário do grande mestre americano, não é tanto a superfície que fascina. Nestas obras a máscara, ela também, tem uma profundidade própria.
Se na série da Alice essa máscara continua implícita, os (auto)-não-retratos propõem essa ferramenta do sujeito por excelência como tema explícito. Os heróis parecem diferentes – mas se nos aproximarmos bem, a questão fica a mesma; o espaço de jogo continua.
7.
O João Concha defende-se contra associações demasiado estreitas com a Alice do Lewis Carroll. Mas aqui, a Alice é, apesar de tudo, uma referência-chave. Ela é a menina que, apesar do seu espanto, aceita tudo o que lhe está a acontecer, nem que seja por vivê-lo com toda a gravidade com a qual se vive a realidade. Viver cada objecto, cada penteio, cada palavra, cada surpresa da realidade que é a da obra, do seu universo. Viver tudo como se fosse aqui e agora, nada relativo – mas sim absoluto.
Assim, neste universo, isto é sempre um cachimbo.